Existe uma ponte inacabada em Jacareí, no caminho onde teria sido construída uma estrada de ferro, há muito abandonada. Restam duas pilastras maciças, cercadas de areias brancas e mata tropical, prometendo realizar o salto sobre o espelho d’agua tímido de uma lagoa à beira-mar. É um quadro que me deixa de coração apertado.
Ponte inacabada. Pilastra na sombra. (Foto CAMS)
A tristeza me vem da ausência de trilhos e do vão central, traindo planos de quem sabe quantas viagens, feriados e aventuras; de trens carregando destinos diversos unidos por breves momentos num só trajeto. Tantos planos, encontros e sonhos que nunca puderam ou poderão acontecer.
A tristeza vem da floresta, que ao esconder lentamente aqueles objetos de cimento e pedra desafia cálculos que jamais serão testados. A natureza na praia deserta e linda, cicatrizando feridas inúteis, nos acusa de planos insensatos, inconstância e medo.
E vem do reflexo no espelho suave da lagoa, tremulo e instável, que se forma e logo desaparece, vítima da brisa caprichosa. Imagens irreverentes que insistem dizer como tudo passa tão depressa!
Mas a mesma brisa que arrepia o mar e a lagoa leva embora a tristeza. Ela me faz lembrar que estradas que precisam acontecer acontecem, só que noutro lugar, e com outros destinos; e que a fragilidade do sonho que passa é justamente a força do próximo.
Agora mesmo fiquei com medo de escrever um texto no Whatsapp para um amigo. Nem é a primeira vez que isso acontece. Ontem, planejando uma viagem, tive medo da polícia de fronteira e imigração na volta. Porque a cor da minha pele, o sotaque na minha fala, e o meu nome, todos indicam que devo ser ilegal, estrangeiro, ou, no mínimo, indesejável.
Há duas semanas, aconselhei uma aluna a tirar do seu currículo qualquer referência ao seu trabalho voluntario ajudando minorias, e ao fato de que ela dança como esporte, arte e paixão. Fiquei arrasado de ver a tristeza no seu rosto, mas ela entendeu e aceitou. Além de ser mulher, hispânica, e com nome difícil de soletrar, tudo virou contra ela num período de oito semanas. Tenho medo do que vai acontecer quando o seu idealismo se defrontar com a arrogância e a estupidez das novas classes dominantes que gostam de chapeuzinho vermelho.
Nos jornais leio que querem acabar com o “jus soli”, ou o direito de quem nasce aqui ser cidadão daqui. Desde pequeno achava que tinha esse direito, e por isso um dia vim recomeçar a vida nesse lugar que eu acreditava ser meu chão também e onde me quereriam. Hoje, em vez de uma pessoa, somos três gerações e treze lugares na mesa no Dia de Ação de Graças. Mas tenho acordado no meio da noite pensando se foi boa ideia ter vindo para cá.
Outono da Liberdade, Primavera do Medo (Foto CAMS.)
Parece que de repente passamos para outra dimensão, uma zona de penumbra, onde tudo que eu tinha aprendido ser bom ficou ruim e vice-versa. Inimigos históricos viraram amigos e vice-versa. O que era para ser sonho virou pesadelo. Para onde foi o equilíbrio entre os poderes? Para onde o valor da honra e do respeito às leis? Para onde o princípio de que as questões devem ser resolvidas em debate franco e justo sem que bilionários comprem qualquer resultado que lhes interesse? Tenho medo de que dessa dimensão bizarra e escura em que mergulhamos não tenha mais volta.
Mas, pensando bem, eu não deveria estar surpreso. Pois para grande parte da população do planeta a vida é mesmo repleta de noites sem sono, dias sem esperança, e de medo. Nas zonas de guerra, nos países sob ditaduras brutais, nas favelas miseráveis, entre as minorias sem voz, e entre os povos nativos até hoje sendo expulsos de suas terras: Medo.
“Passei córgo, passei rio, subi morro e passei mato Vi a cruz de Passa Quatro, vi cabôco frechadô; Andei perdido no sertão lá do Embaú, Fui mordido de urutu… Mongo Veio não vortô…” – Chôro do Mongo Velho, Tradição Popular.
Ao fim do século XVIII Dona Maria I (a louca) era rainha em Portugal, e o Conde de Resende era vice-rei no Brasil. Na Europa os exércitos franceses difundiam as ideias liberais que no Brasil já tinham provocado a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. Enquanto isso, ao norte do Golfo do México, apenas as Treze Colônias haviam conquistado a independência, mas a ânsia pela autonomia estava se espalhando como fogo em capim seco por toda parte. A Grã-Bretanha sob o Rei Jorge III (louco também e aliado de Dona Maria) mantinha a armada francesa acuada em seus portos.
O mundo estava em ebulição, mas o Vale do Paraíba, entre Lorena e o Ribeirão do Salto, estava em paz. Do alto do Morro da Fortaleza, abria-se então como hoje uma vista magnifica do vale. Descendo de Cachoeira Paulista a oeste, o rio café com leite vem se aconchegando sinuosamente aos contrafortes da Mantiqueira, cercado de morros verde claro, escuro, e manchados de barro. A jusante daquele ponto o vale se expande de novo, e o Paraíba corre para Itatiaia mirando o Pico das Agulhas Negras. Em visada mais ou menos perpendicular ao curso das águas, ergue-se ali, na margem esquerda do rio, a Pedra da Mina, cujo ápice a 2798 metros é o ponto culminante do estado de São Paulo. Para completar o panorama, descortina-se ao longe na direção Sul-Sudeste o perfil azulado da Serra da Bocaina. Estando o Morro da Fortaleza a apenas cinco léguas da Garganta do Embaú – onde a estrada real Diamantina-Paraty transpunha a Serra da Mantiqueira – aquele local, além de propicio para lavouras de café e cana-de-açúcar, tinha acesso fácil ao mar, e era, portanto, economicamente atraente para Lisboa.
Habitavam então naquele trecho do Vale do Paraíba os puris, irmãos dos coroados, e inimigos mortais dos botocudos. Seus ancestrais já haviam se espalhado por todo o continente americano pelo menos doze mil anos antes que os primeiros aventureiros europeus se instalassem ali. Nômades por vocação, os puris viviam da caça, da pesca, e da coleta de alimentos silvestres, e quando necessário construíam habitações as mais singelas e passageiras. Falavam uma língua do tronco macro-jê, ignorando que um marquês de peruca em Lisboa tinha declarado em meados do século XVIII que a língua oficial do Brasil era o português. Guardavam profundo respeito pelo mundo natural à sua volta e com ele viviam em harmonia. Acreditavam na vida depois da morte, e colocavam uma escadinha ao pé do túmulo para ajudar o falecido ir para o céu.
Em 1798 o Capitão-General de São Paulo ordenou que os puris daquela região fossem “reduzidos” a uma nova aldeia que seria fundada às margens do rio, perto do Morro da Fortaleza, que se chamaria São João de Queluz. O objetivo do administrador era conseguir mão de obra barata para desenvolver a cultura do café, e assim aumentar o fluxo de riquezas para o exaurido tesouro da metrópole. “Reduzir” significava obrigar o puri a abandonar seus costumes, sua religião, e sua vida nômade e livre, para ir habitar em casa de alvenaria, adotando os costumes do invasor branco, rezando para um novo deus, e trabalhando no campo e nas obras necessárias de infraestrutura. A boa notícia era que os puris seriam donos de lotes de terra em Queluz, além dos equipamentos necessários para a lavoura. Não houve, porém, muitos voluntários para a oferta do capitão-general (nômade não se interessa muito por imóveis), e as tentativas de capturá-los no seu habitat natural estavam fracassando.
Entra em cena Vuitir, mongo (chefe) dos puris, de idade já avançada, mas forte ainda, querido e respeitado por seu povo. O Capitão-de-Ordenanças de Lorena pediu a Vuitir que tentasse convencer os puris a se mudarem para a nova aldeia e ali trabalharem. Vuitir anuiu sob pressão e logrou convencer 86 puris a descerem a serra e irem morar em Queluz. Isso feito, e com promessas dos responsáveis pelo território que dariam todo apoio aos puris enquanto se adaptavam à nova vida, Vuitir partiu para uma viajem de três anos para Lorena. Ao retornar, o mongo encontrou sua gente em estado precário. Doenças, alcoolismo, e desânimo profundo afetavam a maioria. Percebendo que os filhos do vale não seriam mão de obra adequada ou suficiente para desenvolver a região, os encarregados do projeto haviam trazido para Queluz africanos escravizados. Esses sofriam tratamento desumano, presos a correntes, trabalhando e vivendo sob a ameaça de chibatadas e outras torturas. Vuitir, o “selvagem inculto”, se enfureceu com tudo isso, rompeu com os portugueses brasileiros, e partiu para a serra para nunca mais ser visto, vivo ou morto.1
Por que Vuitir concordou com o “aldeamento” do seu povo, e por que teria partido para o exilio, privando os puris do seu apoio em horas tão duras, são questões difíceis de responder, já que ele não deixou carta explicando seus motivos. As ações de Vuitir se inserem num tempo em que os portugueses brasileiros agiam com extraordinário rigor contra os índios bravos, ou seja, os que se rebelavam contra o domínio estrangeiro. Nações inteiras foram dizimadas “a fio de faca”. Era prática comum os agentes do governo colonial espalharem entre nativos objetos contaminados com doenças contra as quais eles não tinham proteção. Eram rotineiros também estupros e casamentos forçados com o objetivo de aumentar o estoque de mão de obra (livre ou não), diluir a etnia das populações nativas, e anular a posse de terras que seriam por direito dos povos originais. Nesse cenário, em que a resistência traria riscos mais graves do que a submissão, a anuência em trazer os puris para a aldeia é compreensível. A partida para o exilio se justifica diante da ruptura de confiança entre Vuitir e os líderes civis e religiosos de Queluz, e o seu sentimento de responsabilidade por ter colocado os puris naquela situação. Ao se embrenhar na floresta num derradeiro gesto de sacrifício, Vuitir deixou de ser o líder amargurado de um povo vencido e se transformou em brado perene de revolta e de esperança na reconquista da liberdade:
“Foge, feitô, Mongo Véio vai vortá! Foge, feitô, taruman, tarumá!”
Eu também, quero que o Mongo volte, e quando voltar imagino que seja recebido com uma grande festa para a qual seriam convidados os filhos dos puris e dos povos escravizados que suaram, sofreram, e morreram com eles, além dos descendentes dos tupis, aymorés, botocudos, e outros dizimados pela perfídia dos invasores que vieram sob a égide da cruz e da civilização.
Nesse dia e nessa festa seria bom se pudéssemos contar ao venerando chefe, que no Brasil de hoje os trabalhadores são tratados com justiça e dignidade, qualquer que seja o seu nível, etnia, nome de família, ou posição social. Seria fantástico ainda, dançarmos ao ritmo de canções alegres de boas-vindas, com as cadencias e gingas de todas as culturas e tradições do Brasil, e afirmar ao saudoso chefe (se for verdade) que existe paz entre os brasileiros, e que sabemos dialogar quando discordamos sobre qual trilha seguir quando a estrada se bifurca na nossa frente.
O mongo vai querer notícias da sua mata querida, dos rios e dos bichos que povoavam o seu mundo de outrora. Alguém vai precisar contar para ele que a onça pintada está ameaçada de extinção2, que a arara-azul praticamente desapareceu no Brasil3, e que ocorrem anualmente incêndios devastadores no Pantanal4 e na bacia do Amazonas5. E sem dúvida ele vai indagar sobre os políticos, militares, e párocos que mentiram para ele. Vai ser triste ter que explicar que os nossos políticos continuam corruptos, inclusive a nível de cacique do país todo. Um já esteve preso, e o outro provavelmente o será. O mais complicado será contar que esses caciques não são nomeados pelo rei de parte alguma, mas escolhidos livremente pelo povo, e que eles ainda toleram – por cálculo político ou incompetência – que fazendeiros persistam matando indígenas e tomando suas terras. Com tantas conversas difíceis, vai precisar na festa muita pinga, quentão, carne seca e tutu-de-feijão, com doce de abóbora, cocada e pé-de-moleque.
Ouve-se ainda o rosnar da onça pintada nas alturas da Mantiqueira, e ecoa pelo vale o trovão de tempestades que faziam o rio transbordar. Embora não existam mais as corredeiras do Ribeirão do Salto (foram engolidas pela Represa do Funil), ainda existe esperança. Não sei vocês, mas por mim não posso mais esperar que o Brasil seja o país de um futuro indefinido que não chega nunca, pois nuvens carregadas estão no horizonte, e o mundo além-mar está cada vez mais povoado de déspotas perigosos. Inclusive a nação que até há pouco era modelo de liberdade e resistência a tiranias elegeu um presidente autoritário armado até os dentes com pretensões a coroa e império. O que acontece do outro lado do planeta pode repercutir no Brasil, no Vale do Paraíba e até nas ruazinhas de Queluz. E vice-versa.
Volta Vuitir!
A revolta de Vuitir com o tratamento dos puris e africanos escravizados veio até nós desde os primeiros habitantes de Queluz através de tradições orais. O resto do relato se fundamenta em registros históricos preservados na Igreja da Matriz em Queluz. Fontes: “Histórias do Rio Paraíba” de João Baptista de Mello e Souza; “O Mistério do Mongo Velho”, peça de Ruth Salles; “Nas Trilhas do Vale” blog de Diego del Passo; e o site https://pt.wikipedia.org/wiki/Puris, acessado em 6/3/2025. ↩︎
Nota: Em 1967, aos 16 anos de idade, ao tomar conhecimento da preterição – e, portanto, fim da carreira – de meu pai na Marinha, escrevi uma carta para ele contando da minha admiração pelo seu percurso, por seu caráter, e idealismo, e ao mesmo tempo compartilhando minha tristeza com a injustiça que (na minha opinião) tinha sido cometida. Era presidente do país o General Costa e Silva, e ministro da Marinha o Almirante Rademaker. Hoje, passados 58 anos, resolvi adicionar um PS àquela carta. Papai já não está mais entre nós, mas lembro-me sempre dele com saudade, e ainda escrevo pensando nele. Um resumo com a essência da carta original vem após o PS.
PS:
Após a publicação pelo Jornal do Brasil de um pequeno extrato de minha carta, recebemos em casa uma advertência do governo militar de que esse tipo de manifestação não seria tolerado e que poderia trazer consequências severas.
Ao ser preterido meu pai pediu transferência para a reserva, e despediu-se dos seus companheiros de farda “(na esperança de que) os mentalmente jovens prossigam na luta, combatendo em prol dos ideais renovadores para a criação de um país forte, e condizente com a sua grandeza.” Tudo levava a crer que a sua preterição, apesar de importantes sucessos como oficial engenheiro, tenha sido causada por seu espirito crítico e por sua luta constante em prol de inovação e progresso em todas as funções que ocupou, priorizando sempre um tratamento digno aos seus subordinados de todos os níveis. Sua participação numa chapa vitoriosa para o Clube Naval, liderada por um capitão-de-mar-e-guerra, e não por um almirante, não ajudou. Ele próprio resumiu assim: “Estou convencido de que essa decisão eliminatória é decorrência da atuação que tive durante toda a minha vida de oficial disciplinado, mas em luta permanente pela evolução da Marinha, e inconformado com a falta de espirito renovador.”
Compreendo hoje o efeito que esses acontecimentos tiveram nas decisões que tomei dali em diante. Dois anos depois, por exemplo, apesar de ter passado no vestibular para a Escola Naval, desisti do meu sonho de “enfrentar o mar no passadiço de um navio da armada.” Eu viajaria muito, muito mais do que teria imaginado naqueles dias, mas não com a bandeira brasileira no mastro do meu navio. Imagino que isso tenha acontecido com muitos outros que assim como eu eram jovens e sonhadores naquela época de medo, prisões sem explicação, e desaparecimentos.
Outro dia presenciei pela primeira vez uma parada naval. Foi por ocasião das comemorações do Dia da Independência, 7 de setembro de 2022, ao largo das praias de Ipanema e Copacabana no Rio de Janeiro. Fiquei surpreso ao perceber que um dos navios, uma imponente fragata, trazia o nome “Rademaker”, em homenagem ao almirante que participou ativamente de diversos governos da ditadura, foi um dos signatários do AI-5, e como ministro da Marinha avalizou a preterição do meu pai. A turba da extrema direita, ostentando a obrigatória camiseta da seleção, enlouquecia de felicidade sonhando ver em breve o seu líder e “mito”, enquanto eu chorava pelo que poderia ter sido.
Infelizmente preciso reconhecer que as afirmações esperançosas que fiz na conclusão da carta ao meu pai foram ingênuas. As injustiças ficaram sim, claro, na memória dos que as sofreram e presenciaram. Mas os responsáveis pelas injustiças e pelo terror continuam intocáveis, imunes, e até venerados por muitos na direita conservadora do Brasil que se dizem patriotas. Alguns até foram promovidos a nome de ponte e navio de guerra! Além disso, neste mundo dominado por plataformas digitais de alcance global – turbinadas pelas fortunas de empresários inescrupulosos – a verdade continua em guerra contra a mentira e a ignorância, mas não existe garantia alguma de que a verdade vá sair vitoriosa. Pelo contrário.
Extratos de uma carta a meu paiem 1967
– Por mais que hoje a virtude seja ridicularizada, a honestidade desprezada, e o patriotismo considerado uma futilidade, eu passei a acreditar nessas coisas, em grande parte por causa do seu exemplo. É justamente por se terem arraigado tão sólidos esses sentimentos, que agora eu me revolto.
– Quanta hipocrisia nas afirmações daqueles que vivem a se ufanar da pátria, a invocar a bandeira e a hierarquia; daqueles que se cobrem de branco e saem a balançar as medalhas na rua! Mas eles são fantasmas, não mais que o derradeiro eco da covardia e da fraqueza moral que tem assolado o Brasil. Eles desaparecerão na poeira do tempo.
– Mas as injustiças que eles praticaram ficarão, não para desanimar as gerações vindouras, mas para servir-lhes de exemplo, e para mostrar-lhes que por mais que a verdade seja combatida, por mais que ela seja eclipsada pela ignorância e pela cegueira, ela se incumbe de destruí-las.
Despedida da Marinha. Aquarela de meu pai em 1967.
O forte fica na Ponta da Igrejinha, no extremo sul da praia. Quando foi inaugurado em 1914 não havia igual na América do Sul em termos de resiliência e poder de fogo. O costão rochoso que o emoldura, e um recife isolado que fica a pequena distância ao longo do seu eixo principal, provocam ressacas memoráveis, pois o mar ali se estende irrestrito até a África e a Antártida. A sudoeste do forte, caminhando cerca de 800 metros através da Praia do Diabo, atingimos a Pedra do Arpoador, e pouco depois a Praia de Ipanema. A Ponta do Leme, em cima da qual está plantado o Forte Duque de Caxias, fica 3,4 quilômetros ao nordeste da Ponta da Igrejinha. Entre as duas pontas e as duas fortalezas se espalha um dos bairros mais vibrantes do Rio: a “princesinha do mar”, Copacabana. Enquanto operacionais, os canhões do forte podiam atingir alvos a até 23 quilômetros de distância com projeteis de quase meia tonelada, defendendo a entrada da Baia de Guanabara num setor de 150°, desde Piratininga ao leste até a Ponta da Joatinga ao sudoeste. Atualmente as torres da fortaleza já estão em silencio há mais de meio século e assim permanecerão para sempre, pois com o tempo o desgaste natural e a corrosão imobilizaram os seus mecanismos de pontaria e municiamento. A antiga praça de guerra virou museu, restaurante, e programa de fim de semana, e assim atrai dezenas de milhares de visitantes ao ano.
Visitei o forte ao entardecer num dia de inverno, quando ele completava 110 anos. Entreguei minha entrada ao soldado de plantão e segui por um caminho em rampa suave, bem arborizado, tendo do lado esquerdo a praia, e do lado direito construções de alvenaria caiada de branco com os escritórios, alojamentos, e outras instalações auxiliares do forte. O mar estava calmo, a praia luminosa pintada de barracas e pipas, e naquela hora apenas crianças e gaivotas vez por outra quebravam a paz. A casamata, impressionante pela espessura das suas paredes e pelo projeto de engenharia que permitiria ao forte continuar em ação mesmo sob pesado fogo inimigo, estava à minha frente. Entrei, e fui relembrando antigas lições de história do Brasil através das exposições do museu. Um dos eventos mais significativos envolvendo o forte ocorreu em 1922, três anos e meio após o término da 1ª Guerra Mundial, e ficou conhecido como o episódio dos “Dezoito do Forte”.
Diante de um sistema eleitoral manipulável e sem a proteção do voto secreto, o Brasil permaneceu refém de elites que se alternavam no poder durante toda a Primeira República (1898-1930). O direito ao voto era limitadíssimo – apenas cerca de 2,5% da população participava das eleições presidenciais – e, portanto os resultados das eleições careciam de representatividade. Ao término do mandato de Epitácio Pessoa, havia muita insatisfação com o governo e com a direção em que caminhava o país, sobretudo entre o oficialato mais jovem. Sob a liderança do Marechal Hermes da Fonseca – ex-ministro da guerra e ex-presidente da república – uma parcela dos militares se revoltou. Durante a rebelião, militares aquartelados no Forte de Copacabana abriram fogo em direção à cidade, mirando o Palácio do Catete, o Forte Duque de Caxias, a Ilha das Cobras e o prédio do Ministério da Guerra, causando fatalidades nos dois últimos. Trocaram também tiros com o Encouraçado São Paulo que havia levantado ferro juntamente com o Minas Geraes para tentar subjugar a fortaleza.
Encouraçado Minas Geraes
Imagine-se o quadro: um navio brasileiro lançando projeteis de 305 mm contra um forte em Copacabana, cuja blindagem os projeteis do navio não poderiam penetrar. O forte, por sua vez, podendo lançar projeteis explosivos também de 305 mm capazes de perfurar a couraça e destruir o navio com seus mil e tantos tripulantes. Felizmente nenhum disparo de parte a parte causou maiores danos. Por fim o movimento não obteve apoio suficiente de oficiais mais graduados, outros focos rebeldes se renderam , e ficou claro que as forças do governo sairiam vitoriosas. Num gesto final de coragem e desafio, dezoito que ainda resistiam dentro do forte saíram para enfrentar cerca de três mil soldados leais ao governo. Só dois desses revoltosos sobreviveram, ainda que bastante feridos: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O governo agiu com severidade contra os revolucionários, e o Marechal Hermes ficou preso no mesmo forte que havia construído.
A bordo do Cruzador Tamandaré (Foto CAMS)
O episódio dos dezoito tem importância quase mística na memória da nação , e marcou o início de um longo período de crises, revoltas, marchas e contramarchas país afora. O forte trocou tiros contra o Encouraçado São Paulo novamente em 1924, porém desta vez quem carregava amotinados era o navio. Atiçado pela depressão econômica mundial, eclodiu em 1930 o golpe de Getúlio Vargas. Entretanto, um quarto de século mais tarde, apesar de progressos importantes em termos de industrialização e nas leis sociais e trabalhistas, a nação permanecia rachada. Em 1955 o Forte de Copacabana abriu fogo contra o Cruzador Tamandaré: a Marinha tentava impedir a volta do Getulismo, enquanto o Exército preferia respeitar o voto popular.
Quanto aos eventos que vieram depois já tenho lembranças próprias. Do período anterior ao golpe de 1964 recordo o medo de uma eventual ditadura repressiva no estilo soviético. Como aluno do Colégio Pedro II no Humaitá, lembro-me da promessa de uma aurora democrática com Castelo Branco, da decepção com o anoitecer deflagrado pelo quinto ato institucional, e do terror deslanchado por uma ditadura repressiva no estilo brasileiro. O Forte de Copacabana serviu de calabouço para prisioneiros políticos, mas não encontrei no museu exibição sobre isso. Não tem placa nas celas onde ficaram os prisioneiros, nem explicação sobre a sorte dos que desapareceram país afora sem deixar vestígio. Da tortura que houve, no forte ou noutras prisões, os gritos das vítimas não estão registrados. Teve anistia declarada pelo próprio regime militar, e pouquíssimos foram punidos até hoje. O museu e suas vitrines quedam mudas, mas as paredes, as grades, e os caminhos do forte carregam ecos do passado.
Lembro finalmente de um dia em setembro de 2022, um século após a marcha corajosa dos dezoito, quando o forte foi pano de fundo para um comício gigante, em que dezenas de milhares de brasileiros ouviram o presidente sugerir que as eleições daquele ano seriam fraudadas, e que, portanto, ele só deixaria a presidência “preso ou morto”. Vieram tiros e fumaça do forte, mas eram apenas salvas comemorativas. A multidão coberta de verde e amarelo temia outra vez o fantasma de um governo autoritário de esquerda. Felizmente ninguém saiu marchando armado nem foi morto naquele dia por causa do discurso do presidente, embora alguns tenham fugido para Miami e outros partido para depredar a sede do governo na capital do país. Mas vocês conhecem bem essa história.
Tendo visto a casamata subi ao topo da cobertura de 4 metros de espessura que a protege. Queria finalmente ver os canhões, e olhar junto com eles em direção ao horizonte de onde viriam as esquadras inimigas em tempos passados. Qual não foi a minha decepção quando percebi que os canhões do forte estavam apontados em direção à cidade. A cúpula número 1, com calibre de 305 mm, mira um ponto entre a Escola Dr. Cicero Penna e o hotel mais famoso do Rio. A cúpula número 2, com calibre de 190 mm, aponta entre as ruas Almirante Gonçalves e Miguel Lemos. Teria sido emocionante mirar ao longo dos tubos imaginando algum perigo que viesse do mar. Em vez disso avistei os prédios da Avenida Atlântica.
Enquanto o forte era parte ativa do sistema de artilharia de costa, seus canhões precisavam mudar de posição periodicamente. Isso porque o peso dos tubos é tão grande que se ficassem sempre na mesma posição provocariam um afundamento na estrutura de suporte e pontaria da cúpula. Portanto, era normal que os tubos da fortaleza estivessem vez por outra apontando para pontos em terra. É pena, porém, que as últimas guarnições que ainda poderiam ter manobrado com os canhões não tenham pensado em deixá-los apontados em direção ao mar aberto, contra um agressor imaginário, e não contra a cidade que eles estavam ali para defender. Ainda que somente pelo efeito simbólico que esse direcionamento teria no futuro.
Quando me dirigi de volta ao pórtico do forte, dezenas de visitantes passeavam e tomavam chá servidos por garçons de uniforme branco. Aproveitavam seus momentos de lazer como se coadjuvantes num palco histórico e lindo. Mas o forte e seus canhões, apontando diretamente para o coração do bairro, nos lembram de todas as vezes em que pegamos em armas contra nossos compatriotas, e nos acusam de omissão. Omissão de não querer ouvir opiniões divergentes. Omissão por ignorar o pleito de alguém que não é do nosso time nem veste a mesma camisa. Omissão por nos acharmos melhores do que os do outro lado, sem lhes dar chance honesta para se explicarem. Omissão de forçar uma solução violenta quando o jogo vai contra nós. Omissão de não querer saber e de apenas “sorrir e acenar” cinicamente. Nos omitirmos é fácil e covarde. Encontrarmos as soluções que permitirão reconciliar facções, unir o país, e construir um futuro melhor para os nossos filhos e netos, é duro e requer coragem.
Farol da Barra, Salvador – Bahia. Aquarela de meu pai, 1943.
“Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei.” – Manuel Bandeira
Quem diria, acabei vindo morar em Pasárgada! Mas se após trinta e tantos anos fiz raros amigos, e nunca fui apresentado ao rei, verdade seja dita, encontrei aqui a mulher que amo e amei. Afirmo, porém, que hoje se pudesse voltaria com ela pra terra do Vinicius e do Ary, onde o mundo se enche de graça por causa do amor , e podemos amarrar a rede em coqueiro que dá coco e a lua vem brincar com a gente .
Veja só a diferença: Se abro a boca em Pasárgada, imediatamente me perguntam de onde sou e como vim parar aqui. O sotaque e a cor da pele me denunciam. Já na terra onde o sabiá canta nas palmeiras , desembarco no aeroporto e em 5 minutos estou batendo papo com o motorista do taxi, que não faz a menor ideia, nem quer saber, de onde eu vim, ou porque cargas d’água me lembro de bonde no Bar Vinte (onde?) 70 anos atras, mas não sei o que se passou de interessante na Tijuca semana retrasada.
Então me perguntas, porque não faço as malas, jogo fora os casacões e a pá de neve, e embarco de volta? Ah, porque é difícil! Com o tempo a gente vai lançando ancoras e amarras por onde passa. Sogros, filhos, netos, seguros de saúde, médicos conhecidos e cachorro, além do medo da mudança e a preguiça de recomeçar. Assim a ancora foi se aprofundando cada vez mais e agora está presa no fundo.
Outono na Pensilvania (Foto CAMS)
Permaneço, pois, nesta terra, onde não sabem pronunciar meu nome (como se escreve mesmo? podes soletrar?) e tenho a sensação de que me olham do alto de suas tamancas pasargadenses. Sim, as ilhas e o mar são magníficos, e é emocionante ver as cerejeiras florescerem com os picos da serra cobertos de neve ao fundo. Mas ao anoitecer, quando lembro da infância e da juventude, do barulho das ondas na praia, da luzinha do farol ora branca, ora vermelha refletindo na parede do quarto, e do cheirinho gostoso da padaria da esquina, a cabeça – sem pedir licença! – alça voo e viaja sozinha de volta.
A existência aqui não é uma aventura e muito menos uma aventura inconsequente. É dura e competitiva tanto ou mais que em qualquer outro lugar. Mas a gente vem atraído por um sonho de oportunidade, segurança, tolerância, e respeito às leis. A gente vem chamado pelas palavras na estátua (“a mim os seus fatigados, os seus pobres, as suas massas encurraladas com sede de liberdade” ), e pelos sucessos de tantos que vieram antes de nós. A gente vem acreditando que haverá líderes, políticos, e patrões corruptos, mas que a lei será cumprida e que ela se aplicará igualmente a todos. A gente vem farto da desordem, do nepotismo, e da corrupção com impunidade para os poderosos; cansado de mentiras, da inflação, da repressão, da censura, da violência, e da arrogância estúpida de líderes incompetentes. A gente vem atraído pela promessa escrita na constituição segundo a qual aqueles que aqui nascerem serão cidadãos do país, com os mesmos direitos e obrigações que têm aqueles que chegaram aqui antes de nós.
Estátua da Liberdade (Foto HRMS)
Infelizmente não se passa mais assim em Pasárgada. O rei, ou tem imunidade, ou seu exército de advogados o protege de qualquer delito, até mesmo o de instigar um quebra-quebra nas instituições mais sagradas do país. A polícia de imigração está solta com poderes para arrancar crianças de salas de aula, e as enviarem a campos de detenção antes de serem deportadas. Censores estão liberados para banir livros, coibir ideias, cancelar professores que dizem que o rei está nu, e prender jornalistas que contam histórias de como um rei sem roupa conseguiu ser eleito por mais de metade da população. As massas que coroaram o rei festejam nas ruas e comemoram a prometida volta a um passado supostamente idílico, a caça a políticos honrados de todos os partidos (inclusive do seu próprio), e a elevação a cargos ministeriais de bajuladores venais e personagens de televisão. Enquanto isso o bobo da corte faz saudações nazistas (talvez por distração?), lança foguetes que dão marcha-a-ré, e é tão rico que raro é o deputado ou senador com estofo para discordar dele ou do rei a quem ele serve. Os picos nevados ainda são lindos e estão a refletir o sol nascente em cor rosa-dourada. Mas a “cidade luminosa na montanha” (shining city on a hill) está se apagando. O sonho que era a Pasárgada da minha juventude mais parece um conto do vigário.
Volto então os olhos para a terra que deixei num passado distante, e fico triste de ver que lá também ainda tem presidente corrupto de esquerda bajulando déspotas estrangeiros que ignoram a vontade popular em seus países, e presidente venal de direita desrespeitando a vontade popular e encorajando golpe e baderna no seu próprio país. Dói ver uma nação com tanta promessa, dividida: uma ala freneticamente liberal, uma ala freneticamente conservadora, e espremida no meio a maior parte da população, atordoada com o barulho, as conspirações, e as ameaças insanas dos dois extremos. A tragédia do meio é que o poder tende para os extremos. O encanto do meio é que lá estão os que preferem torcer pela seleção nacional em paz, sem que essa expressão de amor à pátria seja interpretada como apoio político a quem quer que seja. Lá estão os que apreciam um samba gostoso, uma festinha de São João, e um réveillon na praia à luz de fogos de artificio e pé descalço, sem se preocuparem em verificar se a pessoa ao lado tem a mesma orientação política ou reza para o mesmo deus. O drama do meio é que lá estão o motorista de taxi aflito com que a féria do dia seja suficiente para pagar o custo do carro; a empregada doméstica que estuda à noite para melhorar de vida; e o trabalhador de fábrica, suando para dar uma vida digna à sua família, que será substituído mês que vem por um robô com inteligência artificial. Onde está a Pasárgada que eles merecem?
Se não está aqui nem acolá, precisamos mudar de estratégia e procurar Pasárgada dentro de nós mesmos, no lugar onde estamos. Nós seremos Pasárgada! Deve ser possível, desde que os ânimos se acalmem, os loucos se amansem, inclusive a Rainha Joana da Espanha e outros bem conhecidos. Aqui mesmo passearemos de bicicleta, tomaremos banho de rio, e construiremos o país sonhado para que nossos filhos e netos continuem depois. E pedindo desculpas a Manuel Bandeira, quando eu estiver triste e saudoso, “triste de não ter jeito”, cansado da luta e vontade de relaxar, não me interessa se estou em Pasárgada ou não, quero estar onde me querem, onde não me acham diferente ou estranho, e onde o chão me conhece.
Homem caminhando sobre dunas perto de Natal, RN (Foto CAMS)
“Estejam em paz, espalhem o seu amarelo (abundância) e o seu azul-verde (vida nova)!” Popol Vuh: História da Criação segundo os povos Maia-Quiché.
Cores vivas estalando na brisa e dizendo, “Aqui estou Brasil! Presente!” É a nossa bandeira.1 Ao balançar ela arrepia e acelera o coração. Lembro-me dela no pátio do colégio, terceira serie ou coisa parecida, cantando o hino com a professora na frente da turma. Da Marinha, guardo memória da cerimônia solene de içá-la pela manhã, e arriá-la ao pôr do sol, seja em terra ou no mar. As mesmas cores, se um pouco desbotadas, vi alegrando um futebol de crianças, em campo simples de chão, frente ao Corte de Cantagalo no Rio. Meio sofrida, mas ainda alegre e confiante, na popa de um bananeiro “poque-poque” cruzando a baia de Sepetiba. E a inigualável explosão de verde e amarelo, entre faixas, murais, e flamulas, ao ritmo de samba, em ruas pelo Brasil afora, quando saía vitoriosa a Seleção Canarinho. Em dias alegres ou tristes, em casas simples ou ricas, a civis e militares, ela pertence a todos sem exceção. A bandeira representa e ilumina nossa história, nossos desafios, e nossos sonhos como povo e nação. Ou, pelo menos, assim deveria ser.
Festa em Ipanema na Copa do Mundo de 1970 (Foto CAMS)
Me espanta que de uns anos para cá, em ruas e praças país afora, nossa bandeira lembre um partido mais do que outros. Certos candidatos a cargo eletivo mais do que outros. E assim tenha virado, ou esteja virando, um símbolo das divisões que existem entre nós, ao invés de representar o tanto mais que nos une. Nesse papel ela ornamenta sarongues, camisetas, lenços de cabeça, e toalhas de banho, e parece dizer que aqueles que a adotaram como símbolo da sua maneira de pensar, ou do seu candidato preferido, são mais brasileiros e mais patriotas do que os demais. A meu ver, um contrassenso. Quero sugerir que, ou aqueles que a monopolizaram para si criam outra que os represente, ou todos os brasileiros, de qualquer partido, passem a se vestir de verde e amarelo da cabeça aos pés em suas campanhas, marchas e comícios. A mesma sugestão vale para a camisa e demais apetrechos da Seleção Canarinho.
Por do sol na Bahia (Foto CAMS)
Querendo achar algo na bandeira que diga “sou de todos os brasileiros”, estudei um pouco a sua história. O desenho básico da bandeira foi idealizado pelo artista francês Jean-Baptiste Debret em 1820, a pedido de D, Joao VI, após o Brasil ter sido designado como sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. De acordo com a Professora Cecília Helena Oliveira do Museu Paulista da USP, o conceito de Debret é original em relação a outras bandeiras nacionais, pois o losango dentro de um retângulo focaliza a visão no centro da imagem, e o valoriza. As cores do pavilhão de Debret lembram a família real daquela época: verde para a Casa de Bragança, de Dom Pedro I, e amarelo para a Casa de Habsburgo-Lorena, de Dona Leopoldina. Outra interpretação — mais duradoura pois independe de dinastias históricas ou formas de governo — é que as cores da bandeira descrevem o que existe de mais belo e rico em nossa terra: verde para as florestas e amarelo para as reservas minerais. Ou, conforme palavras do próprio Dom Pedro I, o verde e o amarelo “representam a riqueza e a primavera eterna do Brasil”. É interessante notar que nem a independência nem a declaração da república, alteraram essas duas cores básicas ou a geometria losango-retângulo. Apenas o centro mudou, e não mais lembra as armas de determinada família real. Agora um círculo azul com 27 estrelas distribuídas conforme avistadas no céu do Rio ao anoitecer do dia 15 de novembro de 1889, comemora a beleza do nosso céu, rios e mares, e representa as unidades da federação.
Mas onde estão na bandeira a união do povo, e o sentimento de que somos uma nação? Onde está a mensagem “sou de todos; não me agitem para representar um grupo ou facção em detrimento de outros; não me desfraldem para se vangloriar enquanto menosprezam outros brasileiros!” Florestas, rios e mares, por mais belos que sejam, não nos transformam em nação. Se a bandeira nos representa como povo, ela deveria anunciar também que existe algo que nos une que é mais forte do que tudo que nos diferencia. A “cola” que justifica nos chamarmos um país, uma nação, um Brasil. Ao longo dos anos, cantando o hino em festas nacionais, ou torcendo pela Seleção, deveríamos ter aprendido a vê-la como símbolo do país todo. Mas a experiencia recente nega esse aprendizado.
Eu buscava um significado alternativo para as cores da bandeira, quando encontrei por acaso, ao visitar o Museu de Arte de Los Angeles (LACMA), uma referência à História da criação segundo o povo Maia-Quiché (ou K’iché) que já habitava a Mesoamérica há mais de 15 séculos. “Para os Maia do período clássico (250 EC a 900 EC) o amarelo e o azul-verde se completavam, formando um todo harmonioso, posto que representam um ciclo agrícola completo: desde o verde intenso da germinação nova, até o amarelo dos frutos maduros. A complementaridade dessas cores transmitia beleza, vitalidade, e abundância”, e era tão importante que em sua língua “a junção do glifo correspondente ao azul-verde (yax) com o glifo do amarelo (k’an) compõe a palavra tz’ak, que significa completo.” (Fonte: LACMA, placa descritiva na exibição sobre as culturas mesoamericanas.)
Vendedor de laranjas em Salvador (Foto CAMS)
Porventura esteja aí uma interpretação para o desenho da nossa bandeira que além de lembrar dinastias historicamente importantes, e comemorar a riqueza das nossas terras, avisa enfaticamente que ela nos representa a todos, e que simboliza uma sociedade dinâmica (a ideia de um ciclo de vida continuo desde o verde-azul até o amarelo). E que apesar de existirem muitas diferenças de opinião entre nós, essas nos complementam e prometem uma nação vibrante, desde que tenhamos coragem para conversar sobre essas diferenças, e inteligência para harmonizá-las na busca de um caminho comum. Nessa visão as cores azul, verde, e amarelo representam um país inteiro (tz’ak), em que todos podem e querem exibir seu estandarte com orgulho, e a ideia de um grupo usando a bandeira para humilhar ou coagir outros brasileiros se torna repugnante.
Outro elemento importante na bandeira é a divisa “Ordem e Progresso” que ocupa posição central no círculo azul. Proposta para a bandeira em 1889 por Raimundo Teixeira Mendes, essa divisa é uma versão abreviada de um lema do Movimento Positivista de Auguste Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.” Evidentemente não haveria espaço para que o lema original de Comte fosse reproduzido inteiramente na bandeira. Porem, nesses dias em que existe tanta hostilidade entre os seguidores das diversas correntes políticas no Brasil, gerando rupturas serias até mesmo entre cônjuges, irmãos, pais e filhos, vale a pena lembrar que amor foi um princípio fundamental para os idealizadores da República, e que este sentimento faz parte da bandeira brasileira.
É importante que aqueles que carregam a bandeira e a proclamam como sua, qualquer que seja a sua orientação política, entendam o que ela significa. Se, como proclamam as cores da bandeira somos um povo inteiro, o pavilhão nacional não deve ser usurpado por um ou outro grupo. Se amor é um princípio fundamental para a nação, é preciso que nos esforcemos para construir um futuro comum em harmonia e isso significa engajar em discussões honestas e francas. Se ordem é o alicerce para a construção do nosso futuro, é preciso que as leis e instituições sejam respeitadas, especialmente por nossos líderes. E se progresso é o objetivo final, cumpre estejamos abertos a caminhos novos, busquemos o que é verdadeiro, e rejeitemos teorias fantasiosas sem base nos fatos. Vale lembrar que Comte, inspirador da divisa central da bandeira, acreditava fortemente no método científico e defendia que pesquisa científica ocorresse ao largo de preferências ou opiniões pessoais.
Cores vivas estalando na brisa. Ao balançar ela nos junta numa só emoção.
O título faz referência a uma estrofe do poema “Navio Negreiro” de Castro Alves: “Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, /”, publicado em 1880. ↩︎